Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!
Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!
Sonho que sou Alguém cá neste mundo ...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a Terra anda curvada!
E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho ... E não sou nada! ...
Florbela Espanca
Algumas sugestões de análise ideológica
O sujeito poético desenvolve três conceitos fundamentais: o sonho; o despertar; o simbólico.
É através do sonho que o eu lírico revela o seu narcisismo, o seu egocentrismo, pois utiliza metáforas, hipérboles e símbolos para se ir descrevendo como um ser superior e, portanto, como alguém que se ama a si próprio.
No entanto, como Florbela era dotada de uma personalidade contraditória, surge-nos o último terceto como um desmentido de tudo o que foi sugerido-acorda do sonho (desperta) e conclui que afinal não é nada:"acordo do meu sonho ... E não sou nada"!...
Algumas das metáforas mais sugestivas onde explana o seu "sonho" são aquelas em que se compara com a "Poetisa eleita", ou seja, a melhor, a preferida "aquela que diz tudo e tudo sabe" (de notar também a importância do símbolo transmitido pelo facto de escrever com maiúscula) em que diz que o seu verso tem claridade para encher o todo o mundo. Volta a comparar-se com um ser superior através da afirmação "sou Alguém (...) Aquela de saber vasto e profundo". Notar, mais uma vez, a insistência no vocábulo com maiúscula "Alguém" que transmite o seu grande valor.
Todas estas metáforas são completadas por hipérboles que simbolizam, igualmente, o grande orgulho que deposita nas suas qualidades intelectuais (Poetisa eleita/que diz tudo e tudo sabe/ Que tem inspiração pura e perfeita...").Considera a sua poesia tão importante que não se inibe de exagerar afirmando que um só dos seus versos é o suficiente para "encher o mundo" e, até, para deleitar aqueles "que morreram de saudade" ou, ainda, os "de alma profunda e insatisfeita"e vai mais longe, pois classifica o seu saber como tão extraordinário "vasto e profundo" que até a Terra se lhe curva em reverência "Aos pés de quem a Terra anda curvada". Mas o seu sonho de tão elevado cai e dá-se a queda daquele "anjo" tão sublime e acorda do sonho (desperta) para concluir, (como já dissemos atrás) que tudo se esvaiu e, apenas, a triste realidade ficou "não sou nada". Que triste realidade! Mas era mesmo assim, esta poetisa: uma personalidade contraditória e rica onde o orgulho, o narcisismo e as deceções e contradições se entrelaçavam e se revelaram através de poemas como este.
marfer/cilamatos
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