Sophia de Mello Breyner Andresen foi uma das mais importantes poetisas portuguesas do século XX. Foi a primeira mulher portuguesa a receber o mais importante galardão literário da língua portuguesa, o Prémio Camões, em 1999. O seu corpo está no Panteão Nacional desde 2014 e tem uma biblioteca com o seu nome em Loulé. Wikipédia
Fúrias
Escorraçadas do pecado e do sagrado
Habitam agora a mais íntima humildade
Do quotidiano. São
Torneira que se estraga atraso de autocarro
Sopa que transborda na panela
Caneta que se perde aspirador que não aspira
Táxi que não há recibo extraviado
Empurrão cotovelada espera
Burocrático desvario
Sem clamor sem olhar
Sem cabelos eriçados de serpentes
Com as meticulosas mãos do dia-a-dia
Elas nos desfiam
Elas são a peculiar maravilha do mundo moderno
Sem rosto e sem máscara
Sem nome e sem sopro
São as hidras de mil cabeças da eficácia que se avaria
Já não perseguem sacrílegos e parricidas
Preferem vítimas inocentes
Que de forma nenhuma as provocaram
Por elas o dia perde seus longos planos lisos
Seu sumo de fruta
Sua fragrância de flor
Seu marinho alvoroço
E o tempo é transformado
Em tarefa e pressa
A contra tempo
Sophia de Mello Breyner Andresen
Sugestões de análise, para facilitar a compreensão do conteúdo do poema
Neste poema, há muita emoção e reflexão sobre as inquietações e angústias do ser humano diante das adversidades da vida que são apresentadas através da alegoria das "Fúrias". A autora reflete a sua enorme sensibilidade e o seu olhar crítico sobre um tempo degradado e degradante para a condição humana. Sophia utiliza a figura das "Fúrias" como símbolo das emoções intensas e dos conflitos internos que atormentam o ser humano.
As "Fúrias", mudaram aparentemente, de função: passaram tragicamente da perseguição de "sacrílegos e parricidas" (verso 18) para "vítimas inocentes "(verso 19).
Na primeira estrofe são enumeradas uma série de objetos e situações do quotidiano, caoticamente caraterizados que são também a expressão da "peculiar maravilha do mundo moderno",(verso 14) onde já não existe unidade nem utopia-reino simbolicamente recriado nos versos 21 a 25.
Na terceira estrofe, através da metáfora e da hipérbole, as "Fúrias" são reconfiguradas, em "hidras de mil cabeças"(verso 17), que diariamente, em toda a parte e a toda a hora, nos dividem e fragmentam em fios "Elas nos desfiam", (verso 13).
O plano fónico do poema imprime-lhe um ritmo violento e desintegrador de que são exemplo as aliterações em diferentes oclusivas existentes na primeira estrofe em oposição ás contínuas da 4ª estrofe; a aliteração em sibilante da 3ª estrofe; as assonâncias, as anáforas etc.
A violência do ritmo é acentuada pele ausência de pontuação e pela articulação de versos com diferente número de sílabas.
A estrutura do poema é marcada por versos livres, o que permite uma fluidez na leitura e liberdade de expressão. A escolha de uma linguagem poética mas clara intensifica as imagens e os sentimentos apresentados, criando uma conexão profunda com o leitor.
Sophia evoca elementos da natureza, como o mar e o vento, simbolizando tanto a força das fúrias quanto a incerteza da vida. Essas imagens contrastam com as emoções internas, retratando a dualidade entre o exterior e o interior, entre o caos e a procura da ordem.
O poema é um convite ao ser humano para que reflita sobre as suas próprias fúrias e angústias, sobre a condição humana, para que possa compreender o mundo.
marfer/cilamatos
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